sábado, 28 de novembro de 2009

Cogitações sobre o carcanhol

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Peço paciência aos caros leitores, mas tentarei discorrer simplificando o que me parece, apesar de tudo, complexo.

Está provado cientificamente(1) que os tunos primevos tocavam umas modinhas para saciar parte das suas necessidades. Necessidade de amor, de comes e bebes, de guitarradas e de subsídios para os transportes (o passe escolar da altura), entre outras.

Eis que surge o tema de hoje: carcanhol, pastel, pasta, cobres, trocos, pilim, bago, bagalhuço, cheta ou quaisquer outros sinónimos para pôr ao bolso.

Se aos nossos antepassados era lícito embolsar individualmente uma quantia repartida de uma actuação colectiva, tal poderá sê-lo na actualidade? Ficaríamos chocados, ou não, se víssemos um amigo bastar-se ao exercer a sua condição de tuno? E se fosse um antigo estudante a fazê-lo, seria menos lícito?

Estas cogitações já me assaltavam a mente, que não a carteira, há tempo largo. Muitos de vós dir-me-ão que as tunas já não têm existência contingencial, que já não servem para cumprir, financeiramente, esses propósitos e que, agora, são colectividades sem fins lucrativos.

Pergunto-me porque não poderão ter fins lucrativos e porque não poderão servir financeiramente para a satisfação das necessidades individuais dos seus membros. E se for a satisfação financeira plena dessas necessidades (profissionalização)?

Não tenho uma opinião claramente formada a este respeito, mas em qualquer dos extremos opinativos encontro argumentos que contrariam a memória desses nossos antepassados.

Para terminar, o que pensariam se alguém procurasse lançar uma tuna verdadeiramente profissional? Falo de uma tuna e não de um mero grupo musical travestido de bando de pinguins

Declaração de interesses: Obviamente, não pretendo lançar qualquer tuna profissional, ou coisa parecida, tão-só reflectir sobre a problemática do $ no quadro da tuna.

(1) Esta frase fica sempre bem em qualquer conversa de tasca, mormente nesta.
 
Romeu Sereno

6 comentários:

Panamá disse...

Ora, uma perspectiva actual e interessante de abordar o tema, mas mais do que a "tuna profissional", a questão coloca-se em que tipo de situação o tuno iria colocar a questão de ser "remunerado"... pois nesse aspecto ou é.me explicado bem ou prefiro manter-me na ignorância.

As Minhas Aventuras na Tunolândia disse...

Antes de mais, saudar o regresso deste blog ao activo: faz falta quem toque na feridas tunantes de quando em vez, quanto mais não seja para chatear algumas alminhas...

Eu, nestas matérias, acho o que sempre achei, de facto. As Tunas têm de sobreviver pelos seus próprios meios (coisa intrinseca ao Ser Tuna) e não "à pala" do Reitor ou de alguém, coisa comum nos anos 90 mas que agora escasseia. E porque escasseia, há que esgravatar recursos, o que origina procura de novas fontes de receitas. Será importante contudo ver o seguinte: sempre que haja alguém a "mamar" à custa de uma Tuna, desgraçada desta última que não "mame" à custa da mesma situação. E isto configura o chamado espectáculo a pagar, como se diz na giria. Se alguem vai, com Tunas, ganhar dinheiro, então acho muito bem que as Tunas intervenientes ganhem com isso o máximo possivel. Para caridade há outras actividades e essas, sim, é a Tuna que dá o seu melhor com as várias iniciativas que pode, eventualmente, levar a cabo nesse sentido.

Agora, um Tuno ser remunerado entre aspas pelas actuações que faz com a sua Tuna é que já me parece errado, aliás, anti-Tuna até, como certamente concordamos.As necessidades de um Tuno ao serviço da Tuna devem ser colmatadas com os proveitos que o grupo gera e gere nesse sentido, diminuindo assim, por proporcionar condições, os custos que cada Tuno tem quando se "mete" numa Tuna (e que não são poucos). Diminuir esses gastos é algo que deve provir do cofre associativo e não por via de uma "ordenado" individual, pois esse retiraria de imediato a lógica, noção, base, coerência e natureza do Ser-se tuno e logo, Ser-se Tuna. Aliás, essa é umas das grandes diferenças entre uma Tuna e um qualquer grupo de cordofones, p.ex.

O circuito é simples: deve uma Tuna ganhar o máximo possivel, á sua custa sempre, não deixando que outros ganhem à custa da Tuna o bolo todo. Recebendo nos ditos espectáculos - onde obviamente os de solidariedade e académico/tunantes não figuram - os referidos dividendos, deve a Tuna distribuí-los numa lógica de diminuição de custos dos seus Tunos face à sua dedicação, esforço e trabalho e nunca distribui-los em forma de pagamento efectivo de dinheiro, o que disvirtua desde logo a noção Tuna em abstracto. Deve o cofre associativo proporcionar aos seus associados o minimo de custo possivel pelo exercicio da sua actividade Tunante - e nunca colocar-lhes numerário nas mãos.

Pessoalmente e até hoje, só gastei. E muito. Cá ando porque gosto. Para ganhar dinheiro tenho outras ocupações vocacionadas para tal.

Abraços e venham mais postas!

TunosTunas disse...

Caro AMAT,
Obrigado pelas palavras amáveis. Curioso, basta um escriturário começar que logo outro da repartição decide mandar mais uma posta aqui na “tasca dos pinguins”…
Algo mais me intriga e, pelos vistos, ainda não o consegui expor com clareza.
Percorrendo o caminho histórico de forma regressiva, chegaríamos ao ponto de partida, um momento em que estudantes e pseudo-estudantes, ex-estudantes e eternos estudantes procuravam arranjar uns trocados para viver um estilo de vida que se caracterizava pelo “andar à tuna” (corrige-me se estiver errado), fosse numa cidade determinada, fosse no percurso entre a cidade natal e a cidade de acolhimento estudantil.
Ora, se nestes tempos primevos, diversos tunos se reuniam, provavelmente numa tuna efémera, para a boémia musicada e para tentar sacar umas moedas que sustentassem este “modus vivendi”>, porque diabo não poderá, legitimamente, um tuno actual viver um dia-a-dia igual, em que se basta – com outros semelhantes – por estes expedientes, sem que o acusem de renegar a essência?
Será que não fomos todos nós, ao longo dos séculos, quem foi desvirtuando (na procura do garbo, da elegância e talvez do elitismo) esta forma de estar, ao institucionalizarmos a tuna primeva, perdendo esta característica mais caótica e (bastante) politicamente incorrecta?
Não sei, não…
Romeu Sereno

Eduardo disse...

Caro Romeu:

em primeiro lugar, quero saudar este interessantíssimo blog - que desconhecia, mas do qual me tornarei assíduo leitor.

Vamos por partes:

houve tunos antes de haver tunas. Ou melhor: havia estudantes da "tuna" - da "vida airada", do "acaso da sorte", do "expediente para a sobrevivência". "Tuna" designava o modo de vida desses estudantes, não o grupo.

Todos os nossos raciocínios enfermam de um erro de base: o de que no século tal havia tunas e que os fulanos que faziam parte dessas tunas viviam assim ou assado. É incorrecto: havia grupos de estudantes que se juntavam esporadicamente para conseguirem o sustento - esmola, refeição, etc. Um pouco à semelhança de grupos de indivíduos que vão para a rua tocar ou fazer malabarismos e recebem por isso umas moedas. Por exemplo, nas ruas mais movimentadas de Lisboa ou do Porto é frequente verem-se grupos de punks ou anarquistas a "pedir esmola"; levam uma vida mais ou menos errante, dormem onde calha, comem do que calha, fumam umas brocas, passam fome alguns dias, uns dias tocam guitarra, noutros fazem malabarismo; uns dias fazem malabarismo ao som de guitarras e pode aparecer um companheiro com um djambé... quando querem vão-se embora para outra cidade, os outros ficam... fazem e desfazem o grupo, eventualmente usam códigos próprios de linguagem; transmitem uns aos outros quais os melhores sítios para pedir esmola nesta ou naquela cidade, que polícias evitar, onde podem encontrar outros companheiros - eu sei lá: isto é o que de mais semelhante podemos ver hoje em dia aos "estudantes da tuna" dos séculos de antanho.

Aquilo a que hoje chamamos tunas ficam-se pela semelhança de nomes.

Como as circunstâncias actuais não são as mesmas, o paralelo também não se pode fazer.

Aquilo de que as tunas actuais são herdeiras é de um espírito completamente diferente: uma elite de burgueses e pequenos burgueses que não precisa de habilidades para sobreviver, que se diverte tocando música e que põe os proventos arrecadados ao serviço dos mais desfavorecidos - é isto que nos mostra toda a história recente das tunas.

Ora entre o "andar à tuna" e o "andar numa tuna" vai uma diferença abismal.

Por isso a comparação não é lícita, nem se deve importar um aspecto do passado, deixando o resto de fora, para justificar uma vontade do presente.

Ou seja: se quiseres lucrar com aquilo que a tua tuna faz, podes fazê-lo, mas não porque no passado fosse assim, porque não era - e isto pela simples razão de nesse tal passado não haver tunas :)

Ou podes andar à tuna, mas sem a tuna:)

Abraço e

BOA MÚSICA!

TunosTunas disse...

Caro Eduardo,
Os donos da tasca agradecem o comentário tecido.
Como intróito devo relembrar que lancei este assunto com motivações estritamente dialécticas, sem a mínima preocupação de produzir contributos para a história dos tunos e das tunas, mas com o intuito de inferir alguma coisa dessa história para este tema. Como dizemos no nosso perfil: “a memória colectiva é uma construção mental nem sempre muito fiável...”.
Continuando. A questão é exactamente a que expões e o que dizes corrobora o quadro de partida que apresentei, se escorado no meu comentário subsequente. Aliás, a analogia que fazes sempre me pareceu por demais evidente.
Na sequência, se a tuna, enquanto grupo formal, houver nascido da institucionalização de um ‘modus vivendi’ dos tunos (pois a utilização da designação ‘tuna’ não é, decerto, coincidência), não poderemos alegar que, enquanto facto social, a ‘tuna’ nada tem que ver com os tunos que a antecederam. A não ser que estejamos perante um processo de replicação similar ao da criação das tunas populares em Portugal…
E tudo isto sob pena de ratificar, à partida, o eventual próximo passo; aquele que vem sendo prenunciado por alguns, pois a tuna estará a mudar e alguns conceitos que pretendíamos de referência não o serão para essoutros.
Ou seja, se utilizarmos – legitimamente, diga-se – o argumento de que a sociedade mudou, no sentido de separar as duas realidades de que temos vindo a falar, outros terão – talvez de modo tão legítimo – argumentos para justificar a mudança do paradigma de “tuna” na actualidade.
Deste modo e regressando ao início do tema, será ou não lícito recusar o epíteto de ‘tunos’ aos que venham a reger a sua conduta pela dos tunos primevos e pelo conceito de ‘andar à tuna’? Ao referenciarmos esta possibilidade como sendo arcaica, não poderão outros considerar que a realidade apresentada como hodierna seja, igualmente, anacrónica? Parece-me uma pescadinha de rabo-na-boca… mas veremos.
Voltando ao carcanhol e no contexto da profissionalização em várias áreas sociais (ex.: Bombeiros), enquanto mera prospectiva e só para inquietar ainda mais estas nossas cabeças, o que dizer do seguinte quadro sinóptico?
– Numa primeira fase, poderíamos falar em tuna contexto (tunos à solta) e num segundo momento em tuna grupo (grupo formal de tunos). De seguida, passaríamos à tuna-agremiação (associação institucional de tunos) e, por fim, voilá a tuna-empresa (capital social de tunos).
Perdão pela complicação (mais do que complexidade) dos raciocínios. De todo o modo, esta última passagem foi um bocadito provocatória, mas o tema de partida é mesmo o ‘carcanhol’!

Romeu Sereno

Eduardo disse...

Caro Romeu:

dizes o seguinte:

«Na sequência, se a tuna, enquanto grupo formal, houver nascido da institucionalização de um ‘modus vivendi’ dos tunos (pois a utilização da designação ‘tuna’ não é, decerto, coincidência), não poderemos alegar que, enquanto facto social, a ‘tuna’ nada tem que ver com os tunos que a antecederam.»

A tuna enquanto grupo formal não constitui, efectivamente, uma institucionalização de algo anterior. O que havia anteriormente, e como bem disseste, é um modo de vida. Como estamos todos viciados no significado de tuna, vou, para efeitos de clarificação do pensamento, substituir momentaneamente a palavra "tuna" pela palavra "vadiagem":

os estudantes de antanho andavam na "vadiagem". Com o desaparecimento do foro académico, desapareceram também os últimos estudantes que praticavam aquele estilo de vida. Cerca de um século depois, surge a "moda" das «estudiantinas»: orquestras que se formavam sobretudo no carnaval. Ora os grupos que eram compostos exclusivamente de estudantes, perante este abuso, adoptaram para si o nome de "vadiagens" e, para os seus elementos, "vadios" - pela necessidade de se diferenciarem, tão somente.

Portanto, entre a "vadiagem" a que se entregavam os antigos "vadios" e as "vadiagens" institucionalizadas vai um mundo de diferença.

Substitua-se agora por "tuna" e "tunos" e perceber-se-á melhor que entre o hoje e o antigamente pouco há em comum - salvo a adopção de um nome fora do contexto.

Há uma evolução semântica do termo "tuna", que causa inúmeras complicações exegéticas quando se trata de falar do passado longínquo e do passado recente/presente. O fio condutor é a condição de estudante.

Quanto à questão da legitimidade evolutiva de cada tuna, face ao exposto mais não me resta senão que concordar que houve uma mudança de paradigma e que a forma de estar dos tunos actuais pouco tem que ver - a não ser num conjunto de exterioridades - com os estudantes da tuna: os pressupostos de uns e doutros são muito diferentes, como diferentes são os contextos sociais.

Abraço e
BOA MÚSICA!